Crítica: Estamos Vivos

Por Fabricio Duque

“Estamos Vivos”, do diretor Filipe Codeço, que integra o filme surpresa da mostra Semana Cavídeo no Cine Joia no Rio de Janeiro, representa a experimentação potencializada da narrativa-linguagem cinematográfica à autoralidade, cuja construção é talhada na essência artesanal, expandindo formas, libertando os limites do comodismo da aceitabilidade, e acalorando a arte com o conceito intrínseco do “amadurecimento" confrontado do personagem principal, que filma em plano sequência, sendo os olhos cúmplices e subjetivos do púbico. O espectador é imerso de forma bipolar nos dramas, nas culpas, nos segredos despertados, nos embates, cuja bifurcação é a própria terapia cognitiva familiar de “lavar roupa suja”, ora por sussurros, ora por surtos catárticos, que tem como defesa passional a auto-proteção, esta que luta para que a loucura co-dependente do outro “próximo" (mesmo após onze anos) não seja retro-alimentada (e “prender-se a regras para não se perder" no universo iminente que será adentrado e também não estimular o “atrito com os outros"). A fotografia expõe livremente a luz, visto que as imagens estilizadas, saturadas ao tempo real retratado, de câmera próxima intimista, são captadas por uma limitação perceptiva de uma criança autista, o filho, nosso protagonista interativo, que “conhece a casa em que o pai cresceu”. A metalinguagem embasa a forma, o formato, a consequência e o resultado, personificando sentimentos, e reverberando a atmosfera natural e conceitual como material bruto. Como foi dito, a câmera é o nosso olhar (um distanciamento emocional), e nossa possibilidade de bisbilhotar os pormenores, os detalhes, particularidades, especificidades, manias, o tratamento das relações sociais, como os constantes ângulos que libertam a sistemática da visão curiosa, fazendo com que os outros tenham que encenar a própria espontaneidade (“Ele fica filmando assim?”). É inevitável não inferirmos aos filmes “Arca Russa”, do russo Alexander Sokurov, e “Na Ventania”, do estoniano Martti Helde, por causa da continuidade da retratação; pelo movimento dinamarquês “Dogma 95”, em que o som é “absorvido" pelos ouvidos do protagonista-câmera; e talvez, mais precisamente pela estética do cinema romeno, que tem a família e seus problemas como foco principal, por exemplo, em “Sierranevada”, de Cristi Puiu, que foi exibido na competição principal do Festival de Cannes deste ano. Sim, propositalmente, busca-se uma maior teatralidade, um maior amadorismo, a fim de se aproximar do realismo documental da improvisação, respeitando a textual, porém desconstruindo com o acaso do momento. Assim, alfinetadas, picardias, mágoas, penas, lembranças, memórias das fotos, passados nostálgicos, saudosismo da decoração antiga, pendências emocionais-sentimentais, tudo caminha no limite tênue do vitimismo "sujo" (“nomes na fogueira”) e barreiras agressivas. “Família, a gente não apoia, a gente carrega”, diz-se como se fosse “um pedido de ajuda”. Sim, a narrativa é desengonçada em determinados momentos, mas é para ser, para que possa deixar livre, trabalhar o tempo, lavar a “roupa”, colocar a raiva guardada para fora dos "malas", explodir o barraco, conservar “o problema de comunicação”, e rebater pessoas “sem freios na língua” (como diálogos machistas: “Dar uma frequentadinha na esposa”). “Estamos Vivos” também revisita a estrutura francesa, que é “viajar" ao bucolismo do campo, e com seus ruídos de aves exacerbados acordar o gigante resignado do “ódio" regurgitado durante anos e da “briga até por pudim”. Entre a “gravação de uma novela”, o longa-metragem desperta outra inferência: à peça “Nós”, do Teatro Galpão; e ao filme “Mentiras Sinceras”, de Pedro Asbeg. Aqui, aos poucos, o que vem a tona limpa a alma, expurga os demônios internos, “quebra copos” e radicalmente “abraça" a máxima da psico-análise de Lacan, que pode ser trocado em miúdos em quase como um “matou a família e foi ao cinema” e tendo a união interpretativa dos atores Maksin Oliveira, Patricia Niedermeier, Letí­cia Cannavale, e muito mais. Recomendado.