Crítica Clássico: Eu Vos Saúdo Maria - Je Vous Salue Marie

Por Fabricio Duque

Há cineastas que necessitam de tempo-geração para que sejam inicialmente compreendidos. Um deles é o mestre francês, Jean-Luc Godard, expoente participativo do movimento Nouvelle Vague, que tinha como um dos objetivos-fundamentos a experimentação narrativa e técnica, mas conservando a essência cinematográfica da cinefilia. Ao revisitar clássicos, como o filme em questão aqui, “Je Vous Salue, Marie - Eu vos Saúdo Maria”, de 1985, o primeiro verso da oração “Ave Maria!”, somos “mergulhados" nas imersas, inúmeras e variadas camadas metafóricas à referências histórias e artísticas, e à existência humana e extraterrestre, por monólogos narrativos de verborragia catártica e “brainstorming”. A “tempestade de ideias” vem para representar uma parábola realista e contemporânea sobre a história de Maria, mãe do filho de Deus, que ficou grávida ainda que fosse virgem. Aqui, Godard busca filosofar sem “tabus" sobre a religião de um “Deus covarde”, que confunde se alma vem antes do corpo ou vice-versa, no melhor estilo de quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?. O roteiro quer despertar a auto-inferência do público do mito do amor platônico versus a exacerbação do sexo carnal livre e “líquido”, e também do relacionamento familiar de pais ausentes que deixam os filhos “soltos" (“ele voltará na Páscoa”), e principalmente da incongruência-inexplicável-fantasiosa da Igreja Católica, vulgo Bíblia, que estimula o pecado do fruto proibido e a culpa da liberdade. É um filme sobre a revolta à resignação, contudo, apenas da boca para fora, porque dentro, seguimos à risca, como “cordeirinhos" os desígnios divinos de nosso “pai criador”. “Je Vous Salue, Marie - Ave, Maria” apresenta-se como uma tragédia grega com estrutura simétrica encenada de dança-balé contemporânea, enaltecendo a característica principal de seu diretor: a matemática dos triângulos. Ainda nos dias de hoje, sua narrativa está ainda à frente de seu tempo, porque quebra o próprio ritmo, inserindo desconstruções paralelas de som, imagem e epifania, como o diálogo de uma cena que termina em outra, e ou a título “Naquele tempo” que recorrentemente aparece para desnortear propositalmente o espectador e gerar o sarcasmo de um conto de fadas. O longa-metragem pode mesmo ser considerado um filme feminista, por possibilitar à mulher questionar limites, ordens e acontecimentos do próprio corpo, que se quebram radicalmente, do oito ao oitenta, do nada ao tudo, do status assexuado ao batom vermelho, em que a brincadeira da “baleia" é um paliativo-fuga de “sobreviver" a uma loucura alienante, imposta, “impura" da castidade da alma. Godard transforma-se em um Deus e permite sem “acaso" ou jogo “marionete”, de verdade, o live-arbítrio a seus personagens, que já vivem longe da ambiência das trevas da idade das “pedras”, mas que mesmo assim, perpetua ideias, ideais e passados. “Je Vous Salue, Marie - Ave, Maria” também pode ser captado como um intenso processo da maternidade, que de uma vira dois seres e que pela vida, o propósito será limitado a única opção de manter vivo aquele que foi gerado, e que faz abrir mão de sonhos, quereres, profissões e sociedade. Sim, como foi dito, o filme reverbera questões e questões. Talvez por isso, as críticas da Cahiers du Cinema fossem tão longas e detalhadas, porque cada experiência é literalmente embarcar na transmutação personificada da filosofia abstrata e distante em concreta, real e presente. Mais questionadora. No Festival de Cannes deste ano, de 2016, um filme russo “O Estudante”, de Kirill Serebrennikov, abordou direcionamento semelhante, não sobre Maria, mas sim sobre a radicalismo sincretista religioso de um jovem que tenta literalmente viver pelas linhas da história da Bíblia. “Je Vous Salue, Marie - Ave, Maria” é organizada para mostrar a difícil convivência entre corpo e espírito, em duas histórias paralelas. A primeira é a de Maria (Myriem Roussel) uma menina estudante, que trabalha no posto de gasolina do seu pai, e de José (Thierry Rode) é um jovem que trabalha de taxista. Ao saber da gravidez de sua namorada, José a acusa de traição e quer se separar. Mas o anjo Gabriel tenta convencer o rapaz a aceitar a gravidez e enfrentar os planos divinos junto com Maria. A segunda história é a de um professor de ciências que estuda a origem da vida e que tem um caso com uma de suas alunas. O filme foi proibido no Brasil durante o governo de José Sarney e condenado pelo Papa João Paulo II. Venceu o Festival de Berlim 1985 com os prêmios Interfilm e OCIC - Menção Honrosa. Concluindo, é um filme que transcende o tempo datado e cada vez que passa torna-se mais e mais atual, talvez porque a loucura do ser humano (ou de Maria, uma extra-terrestre) seja eterna e imutável. Recomendado.