Crítica: SieraNevada

Por Fabricio Duque
Direto do 69. Festival de Cannes
11 de Maio de 2016

É inquestionável ao espectador a convicção que temos de que os romenos descobriram a fórmula do fazer cinema autoral com qualidade. Podemos assim, sem medo de errar, listar mais um exemplo desta afirmação, o novo filme “Sieranevada”, de Cristi Puiu (de "Aurora", "A Morte do Dr. Lazarescu"), que integra a mostra competitiva do Festival de Cannes 2016. O longa-metragem, com seus cento e setenta e três minutos, quase três horas, é do gênero documental mas com toda aura de documental porque retrata a intimidade de uma grande família romena (de fora para dentro - da superfície ao aprofundamento, colocando quem assiste no status quo de às vezes como observador (um participativo familiar sem o poder da palavra), ora intruso (portas são fechadas), ora convidado da comemoração de aniversário de morte do patriarca (com seus religiosos rituais-simbolismos caseiros “alimentados" quase por costume). A narrativa abraça o tempo real contemplativo de planos longos, que se intercalam em estáticos e agitados (este último que imerge, desnorteadamente, o espectador na confusão gerencial de seus personagens, buscando reconstruir a tipicidade comportamental do povo da Romênia), como se fosse um estudo antropológico coloquial-cotidiano de vidas filmadas, dissecando tratamentos sociais. O primeiro ato de “Sieranevada” (que assistimos de longe) funciona como uma introdução ao ambiente e como uma “nivelada" sentimental, preparando e amaciando o público ao segundo ato. Aqui, mais uma vez, a personalidade romena é analisada pelos momentos-limites à perda da paciência. Estão a um passo de explodir, e usam o próximo como terapia e os não próximos como catalisador da catarse da violência. Um é a libertação. O outro, o “clube da luta”. O segundo ato, logo de imediato, já explicita por uma discussão de relacionamento de um casal, que tem a mulher que implica, literalmente em surto, e cava “lavar a roupa”, e recebendo a ironia de seu companheiro, que “rebate" com picardias da Disney e das “fantasias da filha", uma forma de criticar a alienação do simbolismo da perfeita felicidade e do final sempre feliz dos "contos de fadas”, e com defesas irônicas para quebrar a sensibilidade procurada da briga (“Ir de barco ao shopping é legal”). O roteiro conecta-se por micro-ações intimistas de humor intrínseco romeno, agressivo-cúmplice-tolerável (entre eles). Cada vez a espontaneidade ganha mais naturalidade de passionais “relatos selvagens”, reverberando utopias-ideologias político-conservadoras ou libertárias do “comunismo” (“A religião é o ópio do povo”) versus “cristianismo” (da “introspecção, não reflexão” - incluindo a toca russa da “velha" - “Nenhum ideal é construído sem sacrifício"), de que “acidentes acontecem" e ou das conspirações sobre 11 de Setembro em New York e Charlie Hebdo em Paris, tudo procurado no “Google”. “Sieranevada”, como foi dito, usa o tempo do desenvolvimento-aprofundamento de mágoas (a traição de um marido “tarado-perverso”), e o desencadeamento da raiva, como o filho que “desconta" na mãe, que “desconta" na filha, que “desconta" no marido. E todos se entendem, e riem, e choram e resolvem todas as pendências emocionais entre eles próprios. Sim, a câmera desconecta o espectador da realidade, quase um “Filho de Saul”, porque nesta família ninguém tem um minuto de sossego, estão sempre no piloto automático de uma reviravolta, cujo “perigo-brevidade” iminente é potencializado pelos mesmos. Há no rádio a música “All That She Wants”, uma amiga bêbada, a comida que sempre atrasa para comer, tudo porque esperam o padre (“Habemus Papam” - referência a Nanni Morretti? - gargalhadas gerais na plateia) para abençoar os alimentos e defumar a casa. Eles são dramáticos, catárticos, intensos, imediatistas, procuram embates, "testemunhas", cigarros e bebidas para passar o tédio e a rotina opressora do “circo" que vivem. Concluindo, um filme que merece ser assistido e degustado, que tem o objetivo de mostrar um momento específico de uma família comum e que segue em final aberto, bem à moda dos Irmãos Coen em suas obras cinematográficas. Recomendado.