Por Fabricio Duque
“Infâncias não são para serem
escritas, são boas para os filmes, quando os filmes são ótimos”, disse o próprio
diretor Domingos Oliveira em seu livro “Vida Minha” sobre seu mais recente
filme “Infância”, “uma crônica de sua infância, que devassa a intimidade da
moral burguesa”. O dramaturgo, com o “pé” nos oitenta anos de idade, usa sua
conhecida sinceridade sobre as coisas e principalmente sobre sua vida, pouco
importando em “esconder” questões idiossincráticas e ou tabus que ocorreram com
ele. O “multitarefado” artista (de "Amores", "Feminices", "Todas As Mulheres do Mundo"), que mescla a atmosfera textual Woody Allen com
o suavizado universo existencialista suavizado de Charles Bukowski, “preenche com
todos os tons”, com saudosismo latente e hiperbólico, suas memórias, que “crescem”
quando provocadas e que se comportam “descontínuas como um filme de Godard”. Um
ser humano apaixonado, visceral, que ama incondicionalmente, porque senão não
ama. “A natureza não tinha o direito de dar aos homens a capacidade de lembrar
com nitidez o passado”, diz. Aqui, em mais um filme “hippie” e “autoral”, Domingos
preserva suas características ficcionais, com “cara” de documental, narrando o
próprio texto e inserindo lembranças pessoais como fotos “novinhas” dele e da
protagonista escolhida, a atriz “furacão”, Fernanda Montenegro. “Infância”
apresenta-se como um filme de época, nostálgico, com “prazer de controlar as combinações
das letras” e “vivendo nos livros, lugar que me sentia livre e só”. Dentro da
casa, o tempo parado (a rádio, seus comerciais – por exemplo, das Casas
Pernambucanas). Lá fora, a modernidade. Passado e presente “interferindo” um no
outro e vice-versa. No longa-metragem, o talento da atriz “Fernandona”,
conhecida pelos amigos, corrobora sua maestria já impecável. Está ótima,
dramática, sensível, “passeando” entre o diálogo teatro versus realismo, uma “articuladora”
política imbatível, com “disse me disse”, fofocas e múltiplas idiossincrasias,
lógico. O lanche tradicional da tarde “encontra” o tempo para discutir os problemas
dos outros, as “coisas íntimas” e as “maldades sinceras”, como uma criança que não
possui “papas na língua”, dizendo sem “freios” o que pensa. Definitivamente,
ela domina em sua interpretação. Não há para ninguém. Só ela em cena. Uma
matriarca “rabugenta” mandona (“Desde quando mãe mente?”). Papel feito para
brilhar de forma “egoísta” pelo “manipulador” roteirista, que também é diretor
e também sem limites para “traduzir” fielmente a hipocrisia da alma humana, que
se auto-“desconcerta” e faz, de forma ingênua, sua “necropsia”, sem esquecer o “amadorismo”
das crianças (interpretações afetadas, mas quem se importa?). Domingos prefere conteúdo
à forma. Texto à embalagem. A música clássica (que não precisa pagar direitos
autorais é a mesma utilizada em seus outros filmes anteriores – mas quem se
importa?). “Leblon é o fim do mundo”, diz-se com mais picardia textual no
discurso que poesia concretista coloquial propriamente dita. É um filme que
respeita a essência de seus personagens, que conversa com eles, que o permitem
usar linguagens vulgares, “sacanas” e sexuais (“coisa que morre, não quero mais”).
Trocando em miúdos, é uma ópera cotidiana da vida privada de uma família. A
trama usa e abusa do sarcasmo, tido como sinal máximo de inteligência, ao “produzir”
embates cúmplices com dramaticidade fílmica, liberdades poéticas da história em
si, lamentações, culpas, análises terapêuticas. Outra maestria dos filmes de
Domingos é como consegue extrair ótimas interpretações. Do Paulo Betti, outro ator
ícone. Talvez, porque seja um “projeto” despretensioso, feito por amigos para
amigos, com “repetições”, “passiflorines”, improvisações, discursos de “Lacerda”
e epifanias familiares pontuais. “Que dia! Cara a gente arranja, o pior é
conversar”, diverte-se. “No pior das vezes, só humilha quem ama”, rebate-se
entre cenas de filmes de Federico Fellini, “que nunca filmou a realidade, e sim
o mistério que cerca a realidade” e da “Felicidade Não Se Compra”, de Frank
Capra. Concluindo, “Infância” é Domingos e Domingos “escreve com compromisso, e
ama sua obsessão” e que segue a máxima de que “o cinema resgata a perdida
inocência, dos desenhos animados”, e que “diante da grande tela, somos de novo
crianças ouvindo histórias dos adultos queridos”. Recomendado.