Crítica: Winter Sleep

Por Fabricio Duque

“Winter Sleep”, título que não foi traduzido literalmente por “Sono de Inverno”, teve sua estreia nos cinemas respeitando sua duração original de três horas e dezesseis minutos. O filme venceu a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2014, não só porque lá na França há preferência por longas obras cinematográficas, mas sim pela ode à existência do ser humano, envolvido em subjetivismos, princípios, moralidades, virtudes, culpas e desejos. O longa-metragem é dirigido pelo turco Nuri Bilge Ceylan (de “A Pequena Cidade”, “Três Macacos”, “Era uma Vez na Anatólia”) e reitera sua característica principal de utilizar a narrativa de novela realista pelo artifício das conversas estendidas e adjetivadas, que traduzem inúmeras conotações e funcionam como uma terapia cognitiva familiar de trazer a verdade à tona, de “lavar a roupa suja” e de limpar as mazelas da frustração presentes na alma, ora por causa do tédio, ora por comodismo, ora por preguiça. O ponto alto é, sem sombras de dúvida, o texto empregado e interpretado de forma afiada, perspicaz e extremamente naturalista. O tom novelesco, em hipótese alguma, comporta-se como depreciativo, apenas indica o gênero narrativo que se deseja conduzir, a fim de criar no espectador uma atmosfera de uma “intrometida” intimidade. Os embates verborrágicos, dotados de superioridade argumentativa e arrogância individual buscam dissecar julgamentos, como “lições sobre temas que não conhece” como religião e espiritualidade (“Você nunca entrou em uma Mesquita”). O fato do “assunto escolher a pessoa”, e não o contrário, “apela” a uma agressividade defensiva, que confronta passionalidades dramáticas, perspicácias, reflexões “egoístas”, sarcasmos, condescendência “sorrateira” (“lobo em pele de cordeiro”), sensibilidades, auto-ilusões e a “requentar os mesmos assuntos” (subterfúgio recorrente para retroalimentação da briga buscada). O vilarejo inóspito do inverno, que mais parece uma imagem animada quando inserida alguma cor, “governado” por um “moderno” patriarca (um ator do passado e um escritor), que possui um hotel na região de Anatólia Central (para turistas) e casas alugadas (para moradores), é transpassado à tela por elipses de um tempo contemporâneo, porém arcaico e atemporal. O roteiro não tem “pudores” em “expor” os verdadeiros sentimentos oportunistas e manipuladores de seus personagens, como quando alguém é confrontado a perder todo o “conforto”, a reação torna-se mais “amigável”. O filme incomoda pela alta carga dramática de interagir quem assiste a um universo constrangedor de percepção do próprio indivíduo, que aqui, “ganha” sua libertação e não precisa mais fingir (exceto pelos empregados “babás”, que necessitam reiterar suas condições subservientes). Só que cada um deles não está preparado a essas “dicas comportamentais”, sentindo-se “atacado” pela verdade das palavras desferidas. São hipócritas e optam por vivenciar seus mundos, iludindo na fantasiosa ideia de ser o que são. Aqui, há quebra paradigmas pré-estabelecidos socialmente, questionando se o rico precisa realmente ter vergonha por ter dinheiro e ou o pobre sempre se utilizar da questão vitimada. Tudo cai por terra quando somos surpreendidos com reações não “condizentes” com a classe social. Tudo muda. O filme, que já era grande, adquire uma maestria inquestionável: a de “explorar” o ser humano pelas “crenças” massificadas, tornando-lhes fantoches de uma moralidade confusa, deturpada e ininteligível. Assim, pela simplicidade das ações, há um trabalho antropológico da complexidade humana que é permeado sem a presença de trilha sonora e ou gatilhos comuns ilusórios. No final, o espectador já está “convencido” sem questionamentos do prêmio que o filme recebeu. “Winter Sleep” tinha o corte inicial de quatro horas e trinta minutos, foi inspirado nos contos de Tchecov, Tolstoi, Dostoievski e Voltaire e o mais longo filme a ganhar a Palma de Ouro. E coincidiu com o centenário do Cinema Turco. Além de tantas outras referências intelectuais. Recomendado.