Crítica: Esse Viver Ninguém Me Tira

“Foi uma experiência muito significativa. Aprendi mais sobre cinema dirigindo esse filme do que em todos os anos fazendo cinema como ator. Por ser um documentário acho que minha experiência como ator não contribuiu tanto assim. Talvez isso influenciasse mais se fosse uma ficção, não sei. Minha experiência como ator contribuiu muito no meu desenvolvimento como diretor de teatro, sem dúvida. Mas não nesse caso. Eu acho que eu tenho uma alma mais de diretor mesmo. Meu olhar para o mundo conversa mais com o olhar de um diretor. Eu gosto de assistir as coisas meio de fora. Geralmente gosto mais de assistir a uma cena na vida do que de participar dela. Isso já foi um sofrimento para mim”, disse o diretor Caco Ciocler.

Por Fabricio Duque

É muito mais fácil consumir a “aventura” na direção de um ator que já possui um talento inquestionável. A nova função de Caco Ciocler conduz o espectador em seu próprio universo ao contar uma história pessoal no documentário “Esse Viver Ninguém Me Tira”, um dos oito selecionado para o Kikito do Festival de Gramado deste ano. Na segunda apresentação no Festival do Rio, o estreante não pode estar presente por “ficar preso no Projac – gravando uma novela”, mas “escreveu” uma carta citando Steven Spielberg, “Tubarão”, tentando transformar “fragilidade em potência”. O diretor americano também judeu usa seus filmes como terapia a fim de expurgar “fantasmas” e demônios internos, exemplo de “A Lista de Schindler”. Aqui, Caco Ciocler corrobora seu principal estilo: o de se impor pela despretensão, pelo sentimental e pelo sarcasmo ingênuo – não agressivo, imprimindo uma espontaneidade amadora, que por sua vez, gera a naturalidade. O nazismo é um período sôfrego, desafiador e sobrevivente. Ele “investiga” a vida de Aracy Moebius de Carvalho, que foi chefe do setor de passaportes do consulado brasileiro em Hamburgo, na Alemanha (“um acaso na história”). “Não tem mais nada que lembra ela?”, pergunta. E aos poucos descobre cartas, emoções guardadas, amores puros e ou paixões. Lá ela conheceu - e se apaixonou - pelo escritor Guimarães Rosa (de “Grande Sertão: Veredas”) e ajudou vários judeus a emigrarem para o Brasil, escapando do nazismo. Um dos objetivos do documentário-retrato é impedir o esquecimento. Aracy, na busca do ator-diretor, permanece viva na memória daqueles (“todos irmãos”) que só existem hoje graças a sua insubordinação e seu “jeitinho brasileiro” de “burlar” o sistema mesmo com a iminência quase explicita do fuzilamento. “Queria mostrá-la às pessoas”, diz. Nós nos damos conta dos porquês que a “personagem” faleceu esquecida, vítima do Alzheimer, pela narrativa descritiva de ambiente espacial, pela narração existencialista-realista-concretista (do próprio Caco) e pela conversa informal com a família (a própria) e amigos (“Ela tinha calor humano – dentro e fora”). Aracy “sai das sombras”. Descasada, com um filho, “intrépida desde cedo”, dona da própria vida, chega a uma Alemanha “nazificada”, ainda tem que “aprender a raça antissemita”, “oferecer” o cumprimento de seu filho a Hitler, vivenciar uma felicidade de um povo estrangeiro em um lugar onde tudo funcionava, e depois ser “introduzida” “na guerra psicológica”, mas “optou por fazer o certo” (alojando até “Geraldo Vandré durante o fascismo” e mesmo sendo “brava, quebrava o galho dos vistos”). Assim, constrói-se a importância desta "guerreira destemida" com ritmo, encenações nostálgicas de ‘Super 8’, passagens históricas e “aulas didáticas” sobre técnicas da imigração de refugiados judeus, devido ao arquivo guardado. “Como conhecer alguém que guardou tudo? Quem era ela?”, filosofa-se. Uma história de uma “esquecida” incrivelmente interessante, de “um mito... (tão) corajosa”, de “imenso valor em correr riscos”. “Um anjo de Hamburgo”, diz-se. Assim como Oskar Schindler e Irmã Dulce, Aracy “caminhou” entre a moralidade e a burocracia. Caco viaja a Israel, passa pelo Muro das Lamentações, descobre que ela foi homenageada (com o título de ‘Justa Entre as Nações’) lá ao conectar “rebeldia” a esse “buraco negro”, foi do “nada ao tudo”, “dando continuidade à vida”. Aqui, são desenterradas lembranças, tabus, relíquias, silêncios e entendimentos do passado. “A morte é esquecimento”, interrompe-se para complementar o que Guimarães Rosa disse “As pessoas não morrem, ficam encantadas”. E quando mal se espera, a resposta que tanto Caco buscou vem de um familiar próximo, logo após os créditos do filme. Concluindo, um documentário necessário, perpétuo, amoroso, pessoal, passional e único. A dúvida inicial de não saber o filme que fez “cai por terra” quando se termina a exibição. Caco respeita os quereres póstumos, os segredos sentimentais e a conservação de sua própria ‘picardia-judaica-ingênua-sentimental’ (mitigando o clichê pelo humor). “O aprimoramento do meu oficio está mais ligado ao amadurecimento pessoal. Atuar, dirigir e criar obras de arte é da ordem das trocas de conteúdo inconscientes. E meu universo inconsciente é desenvolvido pelo conjunto de experiências e pela qualidade dos encontros que tenho na vida e no trabalho. Sou o resultado desse conjunto. Uma experiência específica pode fazer saltar mais rápido meu universo inconsciente, mas ele sempre será o resultado do acúmulo de tudo o que vivi até esse momento. Hoje entendo que posso me exercitar nisso dirigindo e, quem sabe assim, me "curar" desse sintoma na vida! Tem funcionado. Mas eu adoro atuar e foi atuando que construí minha carreira. Então não tenho planos de abandonar a atuação. Acho que venho inclusive me tornando um ator melhor depois que comecei a dirigir. Mas quero sim, cada vez mais, me exercitar na direção.”, finaliza o diretor Caco Ciocler. Recomendo.