“Foi a questão dele em cena: o
olhar dele, o rosto dele e como ele se portava. Ao mesmo tempo, eu gostava
muito de vê-lo esperando para entrar em cena também. Ele sempre dizia que
gostava muito de esperar para fazer as cenas do curta, e do longa também. Foi
observando este ator e observando como ele interagia com as pessoas - a maior
parte das vezes em silêncio - que começou esta admiração por esta pessoa, este
rosto. No segundo momento, quando a gente começou a conhecer mais a vida dele,
virou também uma admiração muito grande por ela. O filme foi feito
principalmente em homenagem a esta pessoa, este rosto, este olhar", disse
o diretor Davi Pretto.
Por Fabricio Duque
“Castanha”, do diretor estreante
Davi Pretto, exibido no Festival de Berlim 2014 (na mostra Forum), no BAFICI, no
Paulínia Film Festival e no Festival do Rio deste ano, documenta o dia-a-dia de
João Carlos Castanha, de 52 anos, um ator performático e transformista em pequenos
teatros e bares gays. A narrativa busca humanizá-lo. O “personagem” realista “conserva”
uma vida solitária e confusa, “viajando” nas próprias digressões, deixando aos poucos de discernir o
que é realidade ou ficção. A “homenagem” apresenta-se digna e necessária
para que a memória não apague os aplausos de sua “existência”. Ele está doente,
perdeu os dois amantes e companheiros ao longo do caminho e parece cansado,
mesmo que nada disso o impede de viver do jeito que ele sempre quer. João vive
com a mãe septuagenária, Celina, no subúrbio de Porto Alegre em um complexo
habitacional de classe média. O documentário intimista, livre e amador (pela
liberdade da câmera de estender os momentos – sem o julgamento de qual ação é
mais importante) explora um ambiente passional, emotivo, tenro, brutal, cruel,
preconceituoso, de glamour fugaz e de opção pela superficialidade como “carreira”.
"Eu acho que eu poderia ir para o inferno. O inferno é um delírio. Um
delírio eterno", diz sobre a “teimosia” de continuar “celebrando a vida” e
sobre o medo “assombrado dos fantasmas” da morte. Davi permite que o espectador
“vivencie”, de forma cúmplice, a “experiência” que está relatando; e “escancara”
uma realidade crível e tão comum (com todos os elementos intrínsecos e idiossincráticos
que um ser humano passa e ou idealiza em sua vida), assim, ficamos incomodados
pela possibilidade antropofágica do nosso reflexo, por mais diferente e longínquo
que seja. É um individuo que “luta” pelos quereres, desejos, vícios, pelas fofocas,
intrigas, alegrias instantâneas, manias enraizadas, necessidades da sobrevivência
e pelas consequências das ações. Todo ser humano possui importância por causa
de sua história única e individualista. “Castanha” desdobra outro
questionamento: o de não haver um documentário “puro-sangue”, visto que criamos
um novo “eu” quando a câmera é ligada. Concluindo, todos nós somos realidade e
ficção para qualquer outro, incluindo a própria mãe de Castanha. “A Celina tem
uma história particular com o cinema, já que era revisora de cópias em 35mm nos
anos 70, mas ela nunca tinha atuado. A gente buscou criar uma relação não só
com ela, mas com todas as pessoas do filme e com todo o elenco, uma relação
familiar que a gente conseguisse destruir um pouco a relação hierárquica que
tem entre a câmera e os personagens. Tentamos colocar todo mundo no mesmo nível
e isso facilitou um pouco o processo. A equipe era toda pequena. No fim das
contas, foi mais tranquilo do que se imaginava e, desde o primeiro momento que
a gente ligou a câmera na produção para um teste, ela já se mostrou muito a
vontade. A gente sabia que ela ia ser uma pessoa muito especial”, disse o
diretor Davi Pretto e que finaliza “Quando você liga uma câmera e enquadra, a
sua experiência de vida está falando junto com seu olhar. Muitas pessoas
disseram que eu tinha poucos filmes para ter feito um longa ou que eu não tinha
ido para muitos festivais para ter ido para Berlim direto, mas, na verdade, eu
sempre penso que tiveram algumas coisas no meu caminho que me prepararam e uma
delas foi o Mohsen Makhmalbaf. Ter conhecido ele, principalmente ter filmado
com ele, foi uma experiência de vida muito grande e um amadurecimento na minha
carreira, mesmo que o resultado do filme sempre seja uma questão subjetiva. Eu
acho que teve muita coisa que eu e principalmente a minha equipe fomos passando
juntos com todos estes curtas que fizemos juntos. Foram estas coisas que deram
uma lapidada para a gente não só preparar mas também ser digno de fazer o
Castanha, porque era um assunto muito forte. Para mim era uma questão de honra
fazer este filme para o João. Ele era uma pessoa muito importante para mim e
estar preparado para lidar com este assunto também era importante”. "O filme é um trabalho coletivo, tanto que o João Carlos assina o argumento do filme comigo. É até difícil dizer o que é real e o que é inventado no filme. Fazer experiências com ficção e documentário não é nada novo, faz parte da história do cinema. Os irmãos Lumière colocaram a própria mãe na estação de Lyon quando filmaram a chegada do trem em um de seus primeiros curtas", finaliza o diretor Davi Pretto.