Crítica: Cães Errantes

Por Fabricio Duque

“Cães Errantes” representa um cinema que imerge o espectador em metáforas silenciosas, revoltas individuais passivas, tentativas frustradas de resignação, em solidões sinestésicas, planos longos e reflexivos, em tempo estendido (corrente) da realidade, em ações cotidianas e literais de uma sobrevivência quase egoísta. Vive-se o instante escolhendo as possibilidades de recomeços e reconstruções. A narrativa autoral do diretor malaio Tsai Ming-Liang (de “O Sabor da Melancia”, “O Buraco”, “O Rio”) é extremamente visual. As imagens transmitem posicionamentos políticos, sociais e existencialistas. Os contrastes são explícitos ao mesclar modernidade e decomposição. A escada invertida de uma casa de luxo, a banheira “high tech” com paredes rachadas e a observação da observação, por exemplo. É metafísica cinematográfica, elemento típico da estrutura fílmica da Malásia. Sentimentos são personificados ao se expor poesias concretistas. O espectador torna-se “cúmplice” quando a câmera está distante e ou quando o roteiro “permite” ouvir o lado desses “cães errantes”. O título em inglês, “Stray Dogs”, se traduzirmos, literalmente, teremos “cães desgarrados, perdidos, casuais, enganados, vagabundos”. Seus personagens “completam” o tempo que lhes resta, seguindo o ciclo da vida. Trabalham, comem, dormem, cuidam de seus filhos e sofrem cada um com seu cada qual. Os “errantes” permitem-se a alienações momentâneas (“consumindo” o simples) ao admirar com tempo estático uma obra de arte pintada em uma parede de uma casa abandonada, que “recebe” a atenção sem cortes em quase dezoito minutos (despertando incômodos na plateia do cinema), ao liberar a raiva em um repolho, ao experimentar o conforto de uma cama de luxo, ao devorar comidas, ao deitar em uma cadeira de relaxamento, enfim, são pausas que estimulam a continuação árdua do caminho. Não há tempo a perder. Não há tempo para idiossincrasias, dúvidas e postergações. Ou se utiliza da ação ou da inércia. Não há meio termo. O cineasta reproduz a essência da arte fílmica, que é teletransportar quem assiste a uma construção sem pressa da história desejada. Muitos acreditam que o filme é sobre o nada, mas “esses muitos” esquecem que os pequenos fragmentos moldam o tudo. Não existe futuro, tampouco história, sem os acontecimentos do agora. Tsai Ming-Liang quer “provocar” pela passividade. Fazer o espectador se questionar sem ter uma trama mastigada. Nós somos confrontados, e com pretensão máxima (e magnífica – já que não poderia ser diferente), expor a nós mesmos ao silêncio incômodo dos males da sociedade, que vivencia o status de individualidade coletiva. Concluindo, uma aula de cinema ministrada por quem possui domínio suficiente para mostrar exatamente o que quer (e o que precisa) sem excessos, sem clichês explicativos e sem mitigar a possibilidade de pensarmos. Respeita-se nossa inteligência. Talvez, um dos pontos mais interessantes seja reparar no público “perdido” nas sessões do filme, que ficam desconcertados, incomodados e “abismados” com a “experiência” cinematográfica que experimentam. Muitos saem, outros bocejam, outros riem de nervoso, e por tudo isso é que agradecemos ao Cine Joia e ao nosso querido Raphael Camacho pela oportunidade de assistir “Cães Errantes” em uma tela de cinema.