Crítica: O Menino e O Mundo

A Fábula Cabocla de um 
Faroeste Sinestésico


Por Fabricio Duque

Todo e qualquer ser humano busca relembrar a nostalgia da infância, uma época de verdades sinceras, desconhecimentos ingênuos e quereres utópicos, cuja existência permite ações simples que suavizam uma complexidade filosófica. As limitações do olhar perceptivo estimulam questionamentos maniqueístas e sentimentais, iniciando-se defesas sociais, que são construídas por massificações referenciais ao próximo. Em “O Menino e o Mundo”, o diretor paulista Alê Abreu (de “Garoto Cósmico”) permite que o espectador “respire” a própria fase inicial da vida, caracterizada por infinitas descobertas que se mitigarão ao longo do caminho que cada um percorre. A sinestesia da memória afetiva é transposta pela animação clássica de traços animados em lápis de cor.

E junto, explora-se tanto a fantasia lúdica quanto a realidade nua e crua, buscando abrigo em referências a Adriana Falcão e Ziraldo, meio menino maluquinho, meio Manoel de Barros, meio “Meu Pé de Laranja Lima”, meio “O Garoto”, de Charles Chaplin. Personificar a melodia metafórica de uma flauta, ter psicodelia como abertura, simplificar com silêncios (e diálogos incompreensíveis) e musicar o típico do sertão com o hip-hop de Emicida expõem estes verbos indicativos a intrínsecas dúvidas existenciais (a perda, o abandono, o entendimento das engrenagens da vida, os “fantasmas” familiares da base) por detalhes abstratos, por exemplo, da emoção despertada. A narrativa “morde e assopra”. Realiza crítica social de um lado (uniformidade plastificada, consumo exacerbado, individualismo coletivo, apartheid das classes sociais, cansaço proveniente de um trabalho resignado, a mala grande, o ônibus lotado, o engarrafamento, a televisão, as casas de prostituição) e procura a liberdade em atos corriqueiros (o barulho do vento, a bicicleta, as cores, a chuva). 

O roteiro, de realismo fantástico, insere nesta animação o elemento de Road movie. Nós seguimos pela vida unicamente para podermos retornar com o devido sucesso e dinheiro (de uma boa aposentadoria). Nascemos ingênuos, vivemos com a imposição de impedir a emoção latente e feliz e chegamos ao fim da vida com a plena vontade de recuperar a infância. Não, definitivamente, não é simples ser criança. No caminho (desenvolvimento) conhecemos pessoas, perdemos coisas, transformamos ideias enraizadas, tudo por necessidade de seguir em frente, sem saber o objetivo. Talvez o caminho seja a parte mais importante do viver. A flauta familiar torna-se solitária (como o carnaval – momentâneo e ou alienante) e encontra outras flautas com outras melodias, mais ou menos alegres, em outras pessoas. O protagonista, do filme em questão aqui, foi resgatar um passado e encontrou um mundo sem limites (e sem chão). A prisão social, o trabalho escravo e a aceitação humilhante perpetuam o estado atual que cada um opta na própria vida, transpostos à tela do cinema por um teatro simétrico de ações e por placas invertidas, como no filme “Tempos Modernos”, de Chaplin. 

Mas há flores no caminho. A solidariedade, a ajuda “carregada”, o afeto, o amor ao próximo e a praia conservam, ainda que ínfimo, o desejo de não “parar de sonhar”. A fábula lembra “Faroeste Caboclo”, música da Legião Urbana. Neste caso, uma criança assiste as injustiças do mundo, aprende a andar sozinho e é “lobotomizado” por um sistema sem “coração” e monocromático. Concluindo, o filme, que obteve menção especial do júri no Ottawa International Animation Festival, é um embate entre esperança e pessimismo. Uma animação obrigatória, que registra com competência, equilíbrio e de forma sensorial a trajetória de vida de todo e qualquer ser humano. “Alguns sonhos sobrevivem”. Não Perca!