Por Fabricio Duque
Um dos objetivos da arte cinematográfica
é autoterapia cognitiva. Muitos diretores utilizam os próprios filmes a fim de
confrontar um passado doloroso e traumático. A “desgraça” é analisada em “sessão
psicológica assistida”. Assim, os “fantasmas” são expelidos, dissecados e
ultrapassados, deixando apenas a lembrança, logicamente, de algo que nunca
deixará de existir. Inúmeros diretores (consagrados ou ainda não)
experimentaram este gênero. O judeu Steven Spielberg em seu “A Lista de Schindler”;
Petra Costa e “Elena”; Maria Clara Escobar e “Os Dias Com Ele”, entre tantos outros.
O tema autoral (e explicitamente pessoal) permite que o espectador possa
adentrar a vidas íntimas. No filme em questão aqui, “Mataram Meu Irmão”,
exibido no Festival É Tudo Verdade, seu diretor, Cristiano Burlan (de “O Homem
da Cabine” e do inédito “Amador”), “exuma” um passado trágico, ouvindo
respostas (e informando a seu público) de familiares e conhecidos.
A narrativa
comporta-se pela “falta” de edição formal, “parafraseando” um vídeo amador (de
festas de família, por exemplo). O conteúdo da trama, as histórias em si, é
traduzido livremente, sem interrupção ou indicação de caminho, passando por
longos fades de conversa com o cemitério, pela imagem estática desfocada, que
serve de pano de fundo a outra conversa por telefone e a comprovada obsessão
pela praia (do diretor). Mas nada é tão intenso, devastador, verdadeiro,
desafiador, chocante, libertador e realista quanto o depoimento do amigo da
família. O que se diz ali traduz toda uma política classista de uma sociedade,
reverberado por uma linguagem culta, pensante, mesclando a fala erudita com a
coloquial. Questionamos ideias defendidas (a alienação dos moradores de uma
comunidade, que vivenciam plenamente o próprio mundo, esquecendo-se do que
existe lá fora – repetindo neologismos e ações boas ou não). Talvez, possa-se
ir mais fundo e descrever a cena como um estudo antropológico de uma realidade brasileira
(sem afloramentos).
Outra consequência que esse gênero faz é a superexposição.
Conhecemos o diretor e sua família. Ficamos sabendo que o irmão foi
assassinato, que os pais também não se encontram mais vivos, que alguns irmãos
morreram e que alguns estão presos. Criamos dúvidas se o próprio diretor
participava dos “desvios de caráter” da época, se era o mais centrado ou não,
visto o comportamento familiar em seu crescimento como ser humano (período de “adotar”
princípios morais e éticos). É um filme que perturba pelo grau de sua verdade
embutida e pela naturalidade que se é transpassada. A área do Capão Redondo, em
São Paulo, é constantemente “alertada” (no filme) como uma área perigosa, com
questões contidas (drogas, violência, roubos e furtos). Filosofando com os
botões, podemos definir Cristiano Burlan como um vitorioso. Um cineasta e professor
de uma escola de cinema. Viveu no meio e não o perpetuou fisicamente, mas
apenas o retrata pela lente de sua câmera. De forma intimista ou não. Sôfrega
ou não. Terapêutica ou não. Concluindo, um documentário não convencional, que
se apresenta pela experimentação do próprio tema abordado e pelo
existencialismo dos planos de câmera. Recomendo.