ESPECIAL: Estudando o Cinema Brasileiro

Estudando o Cinema Nacional Atual Por Digressões Históricas

Por Fabricio Duque

Estudar o cinema atual configura-se como uma tarefa utopicamente desgastante de acompanhar, devido à constante aceleração que as obras estão sendo realizadas. Estamos hoje em uma nova era. A retomada da vez traduz-se pela expressão “Convergência”. É quase humanamente impossível andar lado a lado com as inovações do mercado cinematográfico. Há infinitas sinergias fundindo estéticas, narrativas e principalmente mecanismos exibidores. As inúmeras possibilidades universalizadas forneceram aos cineastas (“velha guarda” ou iniciantes) a pôr em prática a transposição de seus sonhos fílmicos. 

Mas para que se entenda esta “chegada” aos dias de hoje, há a necessidade de se embrenhar no passado não muito distante. E nada melhor que se basear na dissertação de mestrado de Melina Izar Marson, em 2007, da Universidade Estadual de Campinas, para que se possa buscar a “iluminação”, reafirmando que o setor cinematográfico continua regulado pelo mercado. E pela pergunta inicial “Como pensar uma política cinematográfica para o cinema se ele próprio está em mutação: cinema ou audiovisual?” tentaremos desbravar o universo da sétima arte, que se observarmos contextualmente pela história, não foi relevantemente levado a sério. 

Anos noventa. O Cinema da Retomada, produto de disputas e acertos internos, por uma política cultural baseada em incentivos fiscais (desde 1932 – primeira lei federal de proteção ao cinema) para os investimentos no cinema, buscava consolidar-se como estrutura autossustentável. E tudo foi por água baixo quando o presidente eleito Fernando Collor de Mello extinguiu a Lei Sarney (única de incentivo – número 7505/86), a Fundação Nacional das Artes (Funarte), a Fundação do Cinema Brasileiro (FCB), a Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme – órgão de financiamento, coprodução e distribuição) e o Conselho de Cinema (Concine - órgão responsável pelas normas e fiscalização e que controlava a obrigatoriedade da exibição de filmes nacionais), tratando a cultura como um “problema” de mercado e eximindo o Estado de qualquer responsabilidade nesta área. Para se exemplificar, em 1992, apenas três filmes brasileiros foram lançados (1990, sete filmes; 1991, oito; 1993, quatro; 1994, sete). Os cineastas brasileiros precisaram redimensionar conceitos e estruturas técnicas. O longa-metragem “Terra Estrangeira”, de Walter Salles mostra o duro golpe que o Collor representou, como a ruptura da sólida ligação entre o Estado e o cinema brasileiro, transferindo do setor público para o setor privado. “Cultura é papel do mercado e não do Estado”, sustentou o governo. 

O Cinema do Boca (a paulista Boca de Lixo) conseguiu a integração vertical (aliando produção, distribuição e exibição), ficando conhecido como “Cineminha” em contraposição ao “cinemão”, o Cinema Novo, que era produzido pela Embrafilme. O nosso “mercado” nacional não desistia e realmente queria um lugar ao sol, nem que para isso, fosse necessário adequar-se ao “produto industrial” hollywoodiano (sistema de produção, star system – estrelas, subordinado à lógica do mercado, transformando filme “em pacote”). Nasce os High Concept Movies, filmes de narrativa simples, facilmente assimilada e baseada em estereótipos, com ênfase na trilha sonora – o principal exemplo é “Tubarão” de Steven Spilberg, vendendo produtos correlatos como bonés e trilha sonora). É a estratégia da sinergia. 

Uma solução encontrada foi a de uma nova legislação de incentivos ficais dedutíveis pelo imposto de renda, cotas de tela, compras de cotas pela CVM, incentivando estas empresas a “trocarem dinheiro”. Dando ao cineasta e recebendo valores integrais. Mas devido a toda burocracia envolvida, o dinheiro da Embrafilme só foi liberado em 1993 na realização do primeiro “Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro” considerado o pontapé do Cinema da Retomada. Experimentava-se posturas, como a diversidade regional (de São Paulo no “Primeiro Projeto do Cinema Paulista”, ou “Projeto SOS Cultura”; “Programa de Incentivo ao Cinema” e a Lei Mendonça, priorizando o incentivo à produção e à finalização). O Rio de Janeiro preferiu criar uma distribuidora, a Riofilme, com doação de três milhões de dólares da própria prefeitura. Aconteceu então a Lei do Audiovisual, Lei Roaunet, o “Prêmio do Resgate Brasileiro”, tudo para fomentar a indústria cinematográfica. 

Perpetuou-se a máxima do “cinema comercialmente viável – cinemão – e o culturalmente possível – cineminha”. No centenário do cinema, “Carlota Joaquina”, de Carla Camuratti, e o governo de Fernando Henrique Cardoso forneceram repercussão ao Cinema da Retomada, passando por três estágios: constituição como esfera autônoma, emergência da estrutura dualista (ortodoxos e heterodoxos) e um mercado de bens simbólicos, resgatando o “tripé” (Cinema, Estado e Mídia), e visando a visibilidade do econômico, como o Oscar americano. Por meio da “Cultura é um bom negócio”, entende-se que arte é um excelente negócio e de lucro real. 

A convergência estava iminente. Coproduções internacionais, interações com a televisão, viu-se o cinema como mercadoria, conflitando pela ideia do “peso do autor”, autoral em sua concepção, mas tentando inserir-se no esquema da indústria cultural. “Cinema é produto de uma equipe e não de um diretor”, disse Pierre Sorlin sobre o corporativismo interno que dificulta o acesso ao campo. Misturando-se profissionais de várias mídias, o “fazer cinematográfico no Brasil ficou mais caro”, porque incorporou técnicas, linguagens e padrões estéticos da publicidade e da televisão, além dos salários exorbitantes, em uma integração comercial. Em 2001, criou-se a Agência Nacional do Cinema (Ancine) e também a polêmica da expressão “A Cosmética da Fome”, cunhada por Ivana Bentes. 

A Globo Filmes tinha o objetivo de “contribuir para o fortalecimento da indústria audiovisual brasileira e aumentar a sinergia entre o cinema e a televisão, e assim realizou a sozinha a própria política multimídia”. Tentou-se, mas o que conseguiu foi “limitar a diversidade de enfoques temáticos e abordagens estéticas no cinema brasileiro”. 

O Cinema da Retomada surgiu como um sinônimo de cinema da diversidade, “sem diretrizes”, sem um posicionamento único, em que tudo era permitido, reforçando a ideia de cinema de autor. Diferente do Cinema Novo, que prezava o tema popular e revolucionário, o que está em questão aqui, importava-se com a manifestação artística do cineasta. Cacá Diegues defendeu a liberdade e criticou a “unidade como pretexto para burrice”. 

Assim, começamos a perceber que estes “veteranos” possuem muitos direitos e oportunidades em relação aos estreantes, autoconsagrando e punindo os iniciantes. Rompeu-se a prática de tratar “desiguais” como “iguais”. “Não se pode tratr um iniciante como alguém, por exemplo, com a experiência de Luiz Carlos Barreto e ou Nelson Pereira dos Santos”, “profissionais mais experimentados”. Assim, aos que estavam começando recebiam o limite máximo de R$ 120 mil, ao passo que produtores tradicionais (com mais de dois filmes realizados) teriam limite de R$ 3 milhões (podendo captar para três filmes ao mesmo tempo, chegando a R$ 9 milhões), concretizado pelo Secretário do Audiovisual José Álvaro, em 2000. Era uma bola de neve. Enxugar gelo. Os “grandes” criaram “a reserva do mercado”, uma barreira de entrada aos “peixes pequenos”. 

 Em 1998, o mestre Gustavo Dahl já criticava a concorrência. “Uma multidão de projetos, qualificados indiscriminadamente, pressionam a oferta sem conseguir se viabilizar. Esta superpopulação estimula o canibalismo, na disputa exacerbada por conseguir existir”. Programas como Mais Cinema, concurso para novos talentos “cuja existência não é assegurada pela dinâmica do mercado”. Tivemos até um exemplo do Manifesto Dogma dinamarquês, o filme “O Dogma e o Desejo”, de Marcelo Masagão e o TRAUMA (Tentativa de Realizar Algo Urgente e Minimamente Audacioso). 

O Cinema da Retomada inseriu um novo viés: a volta do discurso político. A “repolitização do cinema” (pela tematização da violência urbana – pelo ressentimento, expressando a ausência do horizonte utópico) e o retorno à questão da identidade nacional. A televisão corroborou o caráter industrial do cinema foi priorizado, como “produto de exportação”. 

No filme “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, o boom da Retomada, principalmente pela indicação ao Oscar (americano) obteve críticas diversificadas. De um lado, a inovação. Do outro, “a violência como um produto de consumo”. O historiador Jorge Coli o descreveu como “sedutora embalagem vazia”, lembrando “a cosmética da fome”. Há “linguagem de entretenimento”, como se “passeassem como turistas pelas mazelas sociais do país”, disse o crítico da Folha de SP, José Geraldo Couto. 

Neste novo cinema da Retomada, que incluía “Cronicamente Inviável”, de Sérgio Bianchi, “Madame Satã”, “O Invasor”, gera a percepção catártica do “não há saída, não há possibilidade de salvação para ninguém, nem individual, nem coletiva, uma sensação de podridão, de que ninguém se salva e de que todos são culpados pelo caos”.