Crítica: O Jogo das Decapitações

Por Fabricio Duque

"O filme é isso: raiva. Da minha geração (de setenta anos). Para isso fiz o filme. É uma briga entre os organizados e os desbundados", disse o diretor sulista Sérgio Bianchi (de "Os Inquilinos", " ao apresentar na mostra competitiva do Festival do Rio, no Cinema Odeon, da Cinelândia, seu novo longa-metragem "Jogo das Decapitações", que busca referência em seu primeiro filme "Maldita Coincidência", de 1979 (que por sua vez já reflete um Glauber Rocha em "A Idade da Terra").  Como a arte imita a ficção, lá fora do cinema, manifestantes protestavam e eram recebidos com violência pela polícia. Não se pode negar que energias temáticas se atraem. 

Venhamos e convenhamos, já é sabido, que o espectador necessita preparar-se à experiência sensorial que as obras do cineasta causam. Na pior das hipóteses, socos muito bem dados no estômago até a desnorteação total. O incômodo é gerado pelo confronto com o que se quer esconder: a hipocrisia de cada um de nós, envoltas em preconceitos aceitáveis pela sociedade que manipula. É um filme de "conturbar" o questionamento dos "vitimados" da ditadura, servindo como uma continuação (ou uma nova versão) do último filme de Lucia Murat, "Memória Que Me Contam". 

A narrativa inicia-se didática, tateando o ambiente do discurso e traçando assim a história política, como tese de faculdade. Há realismo do realismo, principalmente pela utilização do digital, que intensifica este universo visceral. Os ruídos integram-se como personagens, indicando que a paciência individual está terminando, como uma bomba-relógio. Há crítica a uma burguesia hipócrita, que se alimenta da alienação massificada e datada das próprias ideias ultrapassadas, ultra-radicais, intransigentes e vitimadas. Que bate força com os empregados e que assiste à violência na televisão. Uma das características mais incríveis no cinema autoral de Bianchi é como prepara seus atores. Não existe interpretação fraca, incompatível e ou fora do tempo. É uma entrega quase sem volta. É imergir no método e esquecer a pessoa por trás da profissão de ator. É o que já comentei em outras postagens. Quando um ator e um diretor encontram a cumplicidade plena, quem sai ganhando é o espectador. Fernando Alves Pinto, Clarisse Abujamra, Maria Manoella, Maria Alice Vergueiro e Silvio Guindane (Troféu Redentor, por favor), entre tantos outros. Chega a ser falta de respeito escolher o melhor. 

Há sarcasmo agressivo, deboche magnético, cinismo de incisões cirúrgicas, dentro de uma impaciência desgovernada, gerando pesadelos (literais) dos medos sociais. "Todo mundo brincando de revolução higiênica", diz-se, regurgitando a contra-cultura pela crítica à igreja, ao sistema, aos jovens de hoje em dia, chamados de "novos reacionários", que "entendem" que a luta dos presos (e torturados) políticos representam um parque temático da exacerbação do sofrimento. Alguns criam Ongs, outros festas, outros sustentam os filhos. É a vida que segue. 

Intercalando, temos a história de Leandro, um jovem insatisfeito com seu trabalho, a partir do seu mestrado sobre a ditadura militar no Brasil, começa uma busca pelo controverso artista recém-falecido Jairo Mendes e seu filme Jogo das decapitações, censurado em 1973; e as cenas do filme "Maldita Coincidência", de 1979. "Qual é o seu papel na mobilização social?", pergunta-se retoricamente. Quem tem razão, já que a opinião é subjetiva, construída no processo de interferência do meio moral, social e político? Sérgio Bianchi é um gênio da narrativa, da estruturação fílmica e de se contar uma história competente, interessante e extremamente crítica. "Jogo das Decapitações" não poderia ser diferente.