Crítica: Flores Raras

Flores Especiais, Mas Não Raras

Por Fabricio Duque


“Flores Raras” faz parte de mais uma produção da família Barreto, tendo como diretor o filho Bruno. Mas se não fosse pela mãe, Lucy, o filme não aconteceria, nas palavras da própria matriarca. Integrando o clã, Luis Carlos, o Barretão, produz a marca e a verba. O longa-metragem foi apresentado à imprensa em dia cheio. Exibição do filme pela manhã e coletiva à tarde (foto abaixo). Pode-se antecipar que apesar da veia comercial – digo isto porque Bruno Barreto (de “O Que É Isso Companheiro?”, “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, “O Beijo no Asfalto”) busca transformá-lo em “um novo Brokeback Mountain”, “buscar indicações no Oscar para as atrizes” –, a película mostra-se como um gênero autoral, e principalmente, de atores. Se analisarmos, sem o aprofundamento necessário, poderemos perceber a maestria da parte técnica (fotografia, direção de arte, e até mesmo incluindo o elemento interpretativo). Tudo começou quando a produtora Lucy Barreto recebeu, na noite de Natal, o livro "Flores Raras e Banalíssimas", de Carmen L. Oliveira e disse “Não sei como, mas vou fazer o filme”. Iniciou colocações técnicas e foi desenvolvendo aos poucos e sozinha.

Elizabeth Bishop (Miranda Otto) é uma poetisa insegura e tímida, que apenas se sente à vontade ao narrar seus versos para o amigo Robert Lowell (Treat Williams). Em busca de algo que a motive, ela resolve partir para o Rio de Janeiro e passar uns dias na casa de uma colega de faculdade, Mary (Tracy Middendorf), que vive com a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares (Glória Pires). A princípio Elizabeth e Lota não se dão bem, mas logo se apaixonam uma pela outra. É o início de um romance acompanhado bem de perto por Mary, já que ela aceita a proposta de Lota para que adotem uma filha.


“É sobre o ambiente da intelectualidade brasileira, que também falava inglês”, continua Lucy sobre a alta percentagem do idioma estrangeiro. Em contra partida, Miranda Otto diz que gostou do desafio de tentar falar português. A matriarca complementa. “Lançado o filme em um momento único, em uma época que se discute o casamento gay. Conheci as duas em 1959, quando estava grávida de Paula. Havia uma cumplicidade, estavam juntas desde 1951, se divertindo só com os olhares”.


A história inicia-se em Nova Iorque, 1951. A fotografia transpassa ao espectador atmosfera bucólica, naturalidade, nostálgica, iluminada sem sol e elegante, como um balé de imagens. A personagem Elizabeth Bishop diz “Vou Viajar”, buscando “a cura” das mazelas tediosas, frágeis, “medrosas” da alma e um recomeço (escolhe-se o Brasil pelo clima e ar exótico). “Como chegamos tão rápido ao Rio (de Janeiro)?”, a frase rompe um entre tantos outros preconceitos e desconhecimentos da estrangeira, que perguntada o que era, escreve “Poeta” como profissão. A viagem significa esquecer por um momento o que se construiu ser, possibilitando que outros “EUs” possam se manifestar, mas logicamente conservando a estrutura comportamental massificada por anos. A música “Malu” na rádio do carro, o jeito informal dos brasileiros, a comida típica (farofa) e a empregada negra “black sister” intimidam a rudeza da visitante, que se expõe retraída, “blasé”, “metida”, “arredia” e “na defensiva”, comparando o Rio como uma mistura de Cidade do México com Miami. Já em Petrópolis encontra o silêncio, pureza, tranquilidade, suavidade e agindo como “perigosa” entrega-se ao conhecimento construído do amor de Lota.  

A narrativa conduz pela estrutura psicanalítica ao personificar sentimentos em olhares penetrantes, autodestruição pela culpa, chuva teatral, reflexos, a parede como crise, sombras, entre “Blue Velvet” na vitrola e Manuel Bandeira. “Que vida é essa que a amizade vem antes do amor?”, pergunta-se, desferindo traições, mágoas, bebedeiras, raivas e “explosões de morro para uma vista melhor”. Ainda sobre a narrativa, há close nos detalhes, sem pressa, soando poesia, dando visão à natureza. Talvez seja o momento mais polêmico a compra da criança para adoção. Se olharmos ao passado, entenderemos que para a mãe que vende é um favor, um alívio, caracterizado unicamente pelo olhar da atriz. Aborda-se também o momento histórico. A criação do Parque do Flamengo (Aterro) por Carlos Lacerda, citações de Tom Jobim “O Brasil não é para iniciantes”, a “constante urgência para comemorar”, a melancolia comportamental, o exílio e o romantismo delicado datam uma época, por elipses contextuais. Bruno Barreto disse que “as dificuldades permearam do inicio ao fim, porque se buscava transformar o antipático em empático, em uma história de amor, fazendo o público gostar das duas”. 

“Meu compromisso é com a verossimilhança e não com a verdade”, complementa. O roteiro trabalha a inversão dos valores morais, éticos e psicológicos. “Gostaríamos que o visual fosse claro, com narrativa visual poética e de contraste (translúcido e quase transparente de Bishop versus a pele escura do sol de Lota). E foi assim”, finalizou Lucy Barreto com seus oitenta anos. Talvez pelo tema, não é tão impossível assim, o espectador referenciar a “Como Esquecer”, de Malu de Martino. Concluindo, pode ser visto como um filme gay, como um filme histórico, como um filme estrangeiro, como um filme exótico, como um filme de melodrama novelesco, mas em todos eles a parte técnica e as interpretações são magistralmente sistemáticas, simétricas e competentes. É o filme de abertura do 41º Festival de Gramado.