Crítica: Transeunte

Ficha Técnica

Direção: Eryk Rocha
Roteiro: Manuela Dias, Eryk Rocha
Elenco: Fernando Bezerra, Bia Morelli, Luciana Domschke, José Paes de Lira, Teuda Bara
Fotografia: Miguel Vassy
Música: Fernando Catatau
Direção de arte: Marcos Pedroso
Figurino: Maíra Senise e Alex Brollo
Edição: Ava Gaitán Rocha
Produção: Walter Salles, Mauricio Andrade Ramos
Distribuidora: Videofilmes
Estúdio: VideoFilmes
Duração: 125 minutos
País: Brasil
Ano: 2010
COTAÇÃO: MUITO BOM




A opinião

O diretor Erik Rocha integra a trupe de cineastas do Novíssimo Cinema Nacional, que significa mais uma retomada. O nosso pólo cinematográfico transforma-se sempre, antenado com experimentações estéticas e técnicas da sétima arte. Erik é filho de Glauber Rocha, um irrequieto realizador e co-inventor do chamado Cinema Novo. O seu pai possuía como tema “Uma camera na mão. Uma ideia na cabeça”. É curioso a interconexão. Hoje, talvez o que diferencie o cinema de agora do de antes seja a possibilidade e facilidade de por em prática a criatividade. Há cameras digitais que captam imagens que são transmitidas a um computador em poucos minutos. A edição é rápida e com inúmeros recursos. O tempo também é outro. Naquele, filmar significava a rebeldia, um descontentamento político, uma revolução com palavras e imagens. No período atual, a visão volta-se ao interno. É existencialista, individualizada, egoísta. O social não é mais convocado à luta, mas sim de mostrar a existência do outro, aquele que passa por nós na rua e não nos cumprimenta. Aquele que se apresenta como um estranho. O que faz o ser humano correr tanto na vida, sem perceber o que acontece ao seu redor?

Partindo dessa premissa, Erik apresenta seu novo filme, estreante na categoria ficção, após três incríveis documentários. O longa-metragem busca a resiliência. Não deseja mudar nada, mas retratar um cotidiano vazio e sem novidades de um aposentado, viúvo, de sessenta e cinco anos. “Transeunte” conta a história de um homem que possui tempo e dinheiro, entre o anonimato de passantes. O que fazer com a hora vaga? Ele observa a vida ao seu redor. As pessoas continuam sendo estranhas, porém esse homem num pequeno instante, conhece um ponto da vida alheia. A narrativa é extremamente existencial e realista, este convence tanto o espectador, que soa como se fosse um documentário do dia-a-dia, de um cotidiano social que se mostra por planos detalhes. As imagens intimistas deixam as ações acontecerem. Quem assiste é convidado a participar da vivência do personagem. É sinestésico, principalmente pela escolha acertada de Fernando Bezerra, que vive o protagonista. O ator está contido, direto, mesclando o cansaço de uma vida, resignação, tristeza por ter perdido a esposa, aceitação por não ter tido filhos, tentando no meio de tudo isso continuar a existência que lhe foi deixada.

“Tá vivo?”, o barbeiro pergunta. “Por enquanto”, ele responde. É maduro, realista, natural. Não há óbvios, nem clichês. Não há excessos ou faltas. É o retrato de senhor na terceira idade que passa seu dia como qualquer outro, respeitando as suas idiossincrasias. Ele dorme, olha a obra em frente ao seu apartamento, vai ao jogo do Flamengo (a sua catarse), ouve notícias em seu rádio portátil de pilha, toma café, almoça, flerta com mulheres (apenas no olhar), bebe, frequenta serestas e anda, anda. O andar é a metáfora do que sobrou a ele. A parte técnica é espetacular. Os inúmeros ângulos de camera transmitem um lugar (que poderia ser qualquer um), dentro de uma atemporalidade atual (podendo também ser qualquer época), já que a história desse homem mistura-se e confunde-se com tantos outros. Mas é na fotografia, de Miguel Vassy, que o filme cativa, impressiona, fornecendo uma experiência sensorial e única. É preto-e-branco, granulada, saturada ao brilho, desfocando e focando, como um balé de percepções. Podemos definir o contexto com uma só palavra: experimental, positivamente falando, porque é competente, lúdico e não despeja apenas imagens a esmo. Há ligações, motivos, explicações. Constrói-se. Aos poucos. Os elementos narrativos são transmitidos numa ida ao médico, conversando com um motorista de taxi.

É um filme solitário. De alguém que viveu com outra pessoa a vida inteira, que amou cada detalhe e que agora ficou sem essa “dependência”. A camera, ora personagem, ora interativa, ora aproxima, ora afasta, possui uma importância fundamental, porque fornece o tempo e direcionamento, como a sombra do outro eu dele que o acompanha. Nesta idade, o tempo acontece mais devagar. Esperar é o futuro na vida de um aposentado. Segue vendo televisão, dormindo, indo ao cemitério colocar flores a sua esposa, comprando um novo lugar para que ela possa “viver”. Em determinado momento, a sobrinha o visita, levando bolo, já que é o seu aniversário. “Você precisa cortar o bolo de baixo para cima, para dar sorte”, ela diz, ainda inserida nas convenções populares. Para ele, é mais um dia de muitos que virão. As cenas são fantásticas, mas destaco uma em especial. Quando Expedito (o nome do nosso personagem principal) vai à Previdência Social, em seu olhar há um misto de submissão. A figura do funcionário público representa o seu dinheiro, como se fosse o julgador que dará a sentença se merece realmente ou não o benefício. É pensativo e contemplativo. A cada instante, ele tenta acostumar-se com o mundo e com suas vontades (sexuais, inclusive). O espectador questiona-se. Por que estar solitário com tantas vidas (e histórias) ao nosso redor?

A música complementa o universo pretendido pelo diretor. Insere informações (e inferências), que são omitidas pela falta de diálogos, que também não são necessários de se ter, já que a imagem explica-se por si só. Sutilmente, quem assiste referencia a “O Outro Lado da Rua”, de Marcos Bernstein, com Fernanda Montenegro, vivendo uma senhora que observa da janela de seu apartamento. Digo sutilmente porque é apenas uma inferência, nada mais, só um outro direcionamento. As músicas incluem Lupicínio Rodrigues em “Nervos de Aço”, exemplo de uma memória nostálgica na época de agora. Expedito experimenta as novidades, como a seresta, que curte e retorna. Busca alegrias momentâneas, como escolher um óculos de sol. É usado a simplicidade como fio condutor da trama. O protagonista não espera nada. Isso é passado ao espectador. É fiel à vontade do personagem. As imagens abstratas transpassam sentimentos internos, os tornando palpáveis e perceptíveis. O roteiro consegue transmitir plenamente o espírito da velhice. É poético e natural, sem ser sentimental. O discurso apoteótico e catastrófico de Lirinha, vocalista da banda Cordel do Fogo Encantado, sobre o dia do amor do Juízo Final, é observado, sem julgamentos. O personagem percebe que a morte é fria, seca, direta e burocrática. A libertação acontece. A constante presença o faz participar de um meio.

Ele canta, com felicidade pura e ingênua, de um menino que se entrega a um brinquedo novo. Há quem diga que o filme é longo, com seus pouco mais de 120 minutos de duração. Para mim, esse tempo é extremamente necessário para que se possa construir uma vida. Concluindo, um longa-metragem incrível pela fotografia, pela musica, pela interpretação arrebatadora de Fernando, pela experimentação estética da imagem. Um filme único, lindo aos olhos, metafórico à alma, resignado ao público retratado e obrigatório a todos que desejam experimentar, sensorialmente, uma vida que observa tantas outras, começando a aceitar pequenos convites cotidianos para recomeçar sua vida. Recomendo. Melhor Filme (Prêmio de Público) do Festival Latinoamericano de 2011. Melhor Ator (Fernando Bezerra), Melhor Som e Prêmio da Crítica do Festival de Brasília 2010. Melhor Filme - Júri do Estudantes - Mostra Panorâmica do Festival de Gramado 2011. Foi Walter Salles, o produtor, quem sugeriu ao diretor Eryk Rocha a contratação de Fernando Bezerra, com quem havia trabalhado em “Linha de Passe” (2008). As notícias ouvidas através do rádio de Expedito foram escolhidas antes mesmo do início das filmagens. Segundo Eryk Rocha, o personagem do profeta é uma homenagem pessoal aos diretores do Cinema Novo, incluindo seu pai, Glauber Rocha.


O Diretor

Eryk Aruac Gaitán Rocha nasceu em Brasília, DF, 19 de janeiro de 1978. Filho de Glauber Rocha com a também cineasta e video-artista colombiana Paula Gaitán, Eryk nasceu durante as filmagens de “A Idade da Terra” e perdeu seu pai aos 3 anos de idade. Viveu com a mãe na Europa até os 15 anos e na Colômbia até os 20. Entre 1997 e 1999, graduou-se em Cinema e Televisão na Escola de San Antonio de los Baños, em Cuba. Seu primeiro documentário de longa-metragem, "Rocha que Voa" (2002), partiu de entrevistas de Glauber que Eryk encontrou nos arquivos do ICAIC, Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos. O filme foi selecionado para os Festivais de Locarno, Veneza, Montreal e Havana, e foi premiado como melhor longa-metragem latino-americano no Cinesul, do Rio de Janeiro em 2002. Recebeu ainda o prêmio de melhor documentário brasileiro no Festival É Tudo Verdade de 2002, da Associação Brasileira de Documentaristas (ABD). Seu segundo longa, "Intervalo Clandestino" (2006), registra a presença da campanha presidencial de 2002 na TV e nas ruas no Rio de Janeiro. "Pachamama" (2008) documenta os resquícios da civilização inca na Amazônia peruana no século XXI. Foi montador do curta "De Glauber para Jirges" (2006). Fez ainda direção de fotografia nos curtas "Campo Geral" (2001), "Limite Branco" (2001), "Dirce a Caminho" (2002), "Maré Obliqua" (2002) e "Medula" (2005), e também no documentário "Zé do Sertão contra a Fera do Mar" (2005). Compôs a música para o curta de sua irmã Ava Gaitán Rocha, "Dramática" (2005) e foi ator no documentário de sua mãe Paula Gaitán, "Diário de Sintra" (2008). Em 2002 publicou, pela Editora Aeroplano, o livro "Glauber Rocha, Rocha que Voa", com a íntegra das entrevistas feitas por Glauber em Havana, em 1971, e que foram o ponto de partida para a produção do filme "Rocha que Voa".
Em 2010 realizou o seu primeiro filme de ficção: "Transeunte" e com ele recebeu o prêmio do público no 6.º Festival de Cinema Latino-Americano de 2011, realizado em São Paulo.

Com a Palavra, O Diretor Erik Rocha

“O p&b me possibilita brincar com o passado e o presente, misturar o que foi e o contemporâneo”

“O rádio permeia todo meu trabalho, até mesmo no curta Quimera. Desde moleque, tenho uma relação forte com o rádio. Quando morei na Colômbia, só conseguia dormir colocando o radinho com som baixo, era quase como um mantra. Acho que alguém tem que fazer um filme sobre isso, o rádio no Brasil, mas radicalizar mesmo a ideia”

“No centro (do Rio de Janeiro) as coisas se misturam, os tempos coexistem. A obra na frente na casa de Expedito é metáfora disso, pois aquela região que ele caminha é uma região da cidade que quase não existem mais. Interessava isso, a transformação do lugar e do homem. Para onde que vai?”

“O Expedito é um personagem que está presente em qualquer metrópole da América Latina. Tem senhores, velhos assim, que não tem ninguém, nenhuma pessoa. Como vão saber que um homem desses passou pelo mundo? Ele não tem família, filhos, mulher... como vão comprovar a passagem dele pelo mundo? Isso me fascinava. O cinema é uma forma de dizer que esse homem passou, materializar a memória, é a prova, o rastro disso”.

Bastidores